Não deves aspirar a ser avestruz.

6 05 2010

“— Afirmaste certa vez — disse-me um dia — que a música te agradava por ser totalmente destituída de moralidade. Está certo. Mas o que importa é que também tu não sejas moralista. Não há por que te comparares com os demais, e se a natureza te criou para morcego, não deves aspirar a ser avestruz. Às vezes te consideras por demais esquisito e te reprovas por seguires caminhos diversos dos da maioria. Deixa-te disso. Contempla o fogo, as nuvens e quando surgirem presságios e as vozes soarem em tua alma abandona-te a elas sem perguntares se isso convém ou é do gosto do senhor teu pai ou do professor ou de algum bom deus qualquer. Com isso só conseguimos perder-nos, entrar na escala burguesa e fossilizar-nos.”

Hermann Hesse. Livro “Demian”.





Possibilidades de chegar a ser homens…

6 05 2010

“Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou
de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas. Todos eles revelam possibilidades de chegar a ser homens, mas só quando vislumbram e aprendem a levá-las em parte à sua consciência é que se pode dizer que possuem uma…”

Hermann Hesse. Livro “Demian”.





Muita diferença.

6 05 2010

“— Sempre achamos que são demasiadamente estreitos os limites de nossa personalidade! Atribuímos à nossa pessoa somente aquilo que distinguimos como individual e divergente. Mas cada um de nós é um ser total do mundo, e da mesma forma como o corpo integra toda a trajetória da evolução, remontando ao peixe e mesmo a antes, levamos
em nossa alma tudo o quanto desde o princípio está vivendo na alma dos homens. Todos os deuses e todos os demônios que já existiram, quer entre os gregos, os chineses ou os cafres, todos estão conosco, todos estão presentes, como possibilidades, desejos ou caminhos. Se toda a humanidade perecesse, com exceção de uma só criança
medianamente dotada, esse menino sobrevivente tornaria a encontrar o curso das coisas e poderia criar tudo de novo: deuses, demônios e paraísos, mandamentos e proibições, antigos e novos Testamentos.
— Pois bem — objetei-lhe. — Mas que fim leva o valor do indivíduo? Para que aspiramos a algo se já temos tudo concluído em nós mesmos?
— Alto lá! — exclamou Pistórius com força. — Há muita diferença entre levarmos simplesmente o mundo em nós mesmos e conhecê-lo.”

Hermann Hesse. Livro “Demian”.





É proibido proibir.

6 05 2010

“Agora, por exemplo, levas contigo, há já quase um ano, um instinto mais forte do que todos os demais e que se rotula como “proibido”. No entanto, os gregos e muitos outros povos fizeram desse mesmo instinto uma divindade à qual rendiam culto em grandes festas. O “proibido” não é, pois, eterno, e sim sujeito a mudanças. Da mesma forma, hoje qualquer um pode deitar-se licitamente com uma mulher, desde que a tenha levado antes à presença de um sacerdote e se tenha casado com ela. Mas há outros povos entre os quais se procede diferentemente. Por isso, cada um de nós tem que encontrar por si mesmo o “permitido” e o “proibido” relativamente à sua própria pessoa… o que é proibido a cada um de nós. Podemos deixar de fazer tudo o que for proibido e sermos, a despeito disso, um ressumado patife. E vice-versa. Em suma, tudo não passa de uma questão de comodidade! Aquele que acha mais cômodo não ter que pensar por si mesmo e ser seu próprio juiz acaba por submeter-se às proibições vigentes. Acha isso mais simples. Mas há outros que sentem em si mesmos sua própria lei, e consideram proibidas certas coisas que os homens de bem perpetram a todo instante e permitem outras sobre as quais recai uma geral interdição. Cada qual tem que responder por si mesmo.”

Hermann Hesse. Livro “Demian”.





Nossa vontade não é livre…

6 05 2010

“— Não, isso não é possível. Nossa vontade não é livre, embora o pároco afirme o contrário. Ninguém pode pensar o que quer nem podemos fazer outro pensar o que queremos. O que se pode fazer é observar bem as criaturas, e assim é possível acertar muitas vezes com o que alguém pensa ou sente em determinado momento e predizer o que fará no momento seguinte. Tudo isso é muito simples, mas os outros desconhecem. É claro que requer muito exercício. Há, por exemplo, entre as mariposas, certa espécie noturna da qual as fêmeas são em número muito mais reduzido do que os machos. As mariposas se reproduzem da mesma maneira que todos os outros insetos: o macho fecunda a fêmea, e esta põe ovos. Quando se captura uma dessas fêmeas (e numerosos naturalistas já comprovaram o fato), os machos vão dar ao lugar onde ela se encontra prisioneira, depois de voarem vários quilômetros de distância, viajando horas e horas através da noite. Presta atenção! A vários quilômetros de distância os machos sentem a presença da única fêmea existente nas imediações. Tentou-se buscar uma explicação para o fato, mas é muito difícil de explicar. Talvez os machos tenham o sentido do olfato extraordinariamente desenvolvido, como os bons cães de caça, que conseguem achar e seguir um rastro imperceptível. Compreendes? A Natureza está cheia de fatos como este, que ninguém consegue explicar. Mas imagino que se, entre essas mariposas, as fêmeas fossem tão freqüentes quanto os machos, estes talvez não tivessem um olfato tão fino. Se o têm é porque se viram na necessidade de exercitá-lo a tal ponto e a
intensificar sua sensibilidade. Quando um animal ou um homem orienta toda a sua atenção e toda a sua força de vontade para determinado fim, acaba por consegui-lo. O mesmo acontece com o que antes dizíamos. Se observarmos uma pessoa com suficiente atenção, acabaremos por saber mais a seu respeito do que a própria pessoa.”

Hermann Hesse. Livro “Demian”.





Metade oficial do mundo.

6 05 2010

” Esse Deus da antiga e da nova Aliança é, antes de tudo, uma figura extraordinária, mas não o que realmente deveria ser. Representa o bom, o nobre, o paternal, o belo e também o elevado e o sentimental…está bem! Mas o mundo se compõe também de outras coisas. E todas essas coisas são simplesmente atribuídas ao Diabo; toda essa parte do
mundo, toda essa outra metade é encoberta e silenciada. Glorifica-se a Deus como o Pai de toda a vida, ao mesmo tempo em que se oculta e se silencia a vida sexual, fonte e substrato da própria vida, declarando-a pecado e obra do Demônio. Não faço a menor objeção a que se adore esse Deus Jeová. Mas creio que devemos adorar e santificar o
mundo inteiro em sua plenitude total e não apenas essa metade oficial, artificialmente dissociada. Portanto, ao lado do culto de Deus devíamos celebrar o culto do Demônio. Isto seria o certo. Ou mesmo criar um deus que integrasse em si também o demônio e diante do qual não tivéssemos que cerrar os olhos para não ver as coisas mais naturais do mundo.”

Hermann Hesse. Livro “Demian”.





O que é comum aos bípedes…

6 05 2010

“A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode. Todos levam consigo, até o fim, viscosidades e cascas de ovo de um mundo primitivo. Há os que não chegam jamais a ser homens, e continuam sendo rãs, esquilos ou formigas. Outros que são homens da cintura para cima e peixes da cintura para baixo. Mas, cada um deles é um impulso em direção ao ser. Todos temos origens comuns: as mães; todos proviemos do mesmo abismo, mas cada um — resultado de uma tentativa ou de um impulso inicial — tende a seu próprio fim. Assim é que podemos entender-nos uns aos outros, mas somente a si mesmo pode cada um interpretar-se.”

Hermann Hesse. Livro “Demian”.





Quixote

12 04 2010

“Você trazia no íntimo uma imagem da vida, uma fé, uma exigência; estava disposto a feitos, a sofrimentos e sacrifícios, e logo aos poucos notou que o mundo não lhe pedia nenhuma ação, nenhum sacrifício nem algo semelhante; que a vida não é nenhum poema épico, com rasgos de heróis e coisas parecidas, mas um salão burguês, no qual se vive inteiramente feliz com a comida e a bebida, o café e o tricô, o jogo de cartas e a música de rádio. E quem aspira a outra coisa e traz em si o heróico e o belo, veneração pelos grandes poetas ou a veneração pelos santos, não passa de um louco ou de um Quixote.”

Hermann Hesse. Livro “O lobo da estepe”.





Copo de cerveja à mão.

12 04 2010

“_Talvez seja verdade_exclamei enérgico_ mas com verdades semelhantes a esta de que temos todos de morrer e que, por conseguinte, tudo é igual, é que convertemos a vida em algo monótono e estúpido. Desta forma, teremos de renunciar a tudo, ao espírito, às aspirações; teremos de destruir a Humanidade, teremos de permitir que reine o egoísmo e o dinheiro e esperar a próxima guerra com um copo de cerveja à mão.”

Hermann Hesse. Livro “O lobo da estepe”.





Eterno jogo.

12 04 2010

“Ao mesmo tempo pensava comigo: assim como agora me visto e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo isso contra a minha vontade; assim procede a maioria dos homens que vivem e negociam todos os dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo; fazem visitas, mantêm conversações, sentam-se durante horas inteiras em seus escritórios e fábricas, tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de exercer a crítica de sua própria vida, reconhecer e sentir sua estupidez e superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão.”

Hermann Hesse. Livro “O lobo da estepe”.